9.4.07

lab. de criação de textos I


na terceira margem do medo


Intento encontrar um ponto magnético, atrator estranho, na miríade de coisas que crio/produzo/reciclo. Algo que comova o fundo de tudo isso, como sentido e a própria negação dele. Mas o movimento a esse princípio totalizante chama atenção por sua falácia e incertitude: será que naquilo de mutável percebesse a clareza de um processo?

Por certo que temos temas. Percorremos nossos prazeres e horrores, com diária eficiência, para afinal edulcorar a fera e a bela. O tema é a primeira parede do medo. Essas estórias como martelinhos imperceptíveis palpitando cada passo que damos. Ora, o tema é cansativo! Sustentar o correr imperioso do mundo em nossas costas é para os muito fortes ou para os muito loucos! Foi o que veio à idéia ao ler o conto de Guimarães Rosa… O tema da renúncia. O tema da potência. A terceira-margem não é o outro, o eu ou o além-mundo. Talvez um encontro neo-xamânico entre o frio da bola oca e a jia da racionalidade heraclitiana. Talvez a pura performance de uma ação de encontro à não-ação.

Nunca é o mesmo rio em que nos banhamos. Essa frase sempre me soou cruelDesejos de continuidade, despejos de entropia. Porque esperamos? Porque cremos?

O relativismo é a marca dos tempos. A ética baila ao sabor dos mercados santificados. Produtivo no ócio: opiado pelas besteiras. Os heróis são os solitários coletivizados(?) - Então, em desespero, desejamos algo sólido! Esse algo sólido foi e continua sendo o medo. Temas e temores. Kafka rompeu a bola-oca; Rosa falou com a jia; Lautréamont riu à beça e inaugurou o futuro do presente:


Elohim é feito à imagem do homem.

Várias coisas certas são contraditas. Várias coisas falsas são incontraditas. A incontradição é a marca da falsidade. A contradição é a marca da certeza.

Uma filosofia para as ciências existe. Não existe uma para a poesia. Não conheço moralista que seja poeta de primeira ordem. É estranho, dirá alguém.

É uma coisa horrível sentir escorrer aquilo que se possui. nos apegamos pela idéia de procurar se nãoalgo permanente.1


alguns cacos de uma página dos Poesias II, fino livreto, publication permanente de Ducasse/Lautréamont, que não tem nenhuma “poesiacomo costumamos pensar nela. Máximas e pensamentos de filósofos e moralistas, tais como Pascal e Vauvenargues, travestidos e sampleados na lógica quântica de quem foi além das correntes dos rios e velhos oceanos. Não importa muito o sentido: o que está em jogo é a dança da Lógos, como bem queria Ezra Pound. Logopéia2 de um simulador de processos auto-ironizantes. Ou, citando o tradutor brasileiro da obra completa de Lautréamont, Claudio Willer: nas afirmações pseudo-moralistas, e nos elogios a personagens literariamente inexpressivos ou ridículos, a imitação da imitação, simulação do simulacro, corresponderia à restauração da originalidade… e …resultando em um antilivro, a destruição da literariedade.3

Mas fugimos do tema… O medo e a redenção. Parafuso torcido reunindo meus sentidos. A poesia não é o amor. O amor não é a filosofia. A filosofia não é a lógica. O eu não é o outro! Se existo, não sou um outro.4 Ai, meu Rimbaud!

Delícias da negação. Isso é uma pequenina parte dos Poésies. Os Cantos, por sua vez, tem o poder afirmativo da mordida de seis mil tubarões-tigre. Mas não devemos tratar do tema em mente nessa que é considerada por muitos a obra máxima do outro Amón. Por pura falta de retórica e conformação ao zeitgeist laudatório. Basta notar que tema mente medo são as mesmas coisas. Basta que possamos conversar, ligados, nesse e nos encontros próximos. Perene compartilhamento. O lobo é um animal gregário e fiel ao seu par. Mais do que o homem do lobo: o que permanece selvagem, o que permanece instinto de matilha?

É nessa raiva infantil que talvez resida um motor meu… A coragem de um menino que se aventura pelas artes em desaclamo à história. A covardia de um jovelho que permuta a crítica pelo medo. O temor que invoca a luta. A luta que promove a coragem, que age no coração, da ação do negativo no positivo e vice-versa.

Isso fica visível em muitos poemas, fotografias e vídeos de minha produção mais regular. Exemplificando textualmente, o poema:


Galatéia


esteios do mundo vício
meu
medo em pedra-pomes
surra de tempos alheios
: ali ferver fundo fel

quis dizer boca a boca
: és espelho sem brilho
polido
de luz e rudeza!
grande dor no oco peito

chaga fria que abençoa:
ser vago é melhor que
partir o amor a esmo
: vês apenas o reflexo!

receio de dar no muro:
grato ao seio que mamo
: dizes o
que sei :
o medo
é porto-seguro 5

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Ou se percebe o encanto da cor encáustica. Paralelos com a lava da terra sem a limitação da superfície fria. Mas isso também outro papo/lado. Lautréamont me fez ver o medo menino mendigo do homem com os olhos de um romantismo sem igual. Algo como Beuys e todos somos artistas. Uma redenção pela catarse inaugural do além-do-moderno, pelo que transcorre ao lado, à margem, dentro e fora do mundo imágo real. O mundo que sussurra, com seu fino e brilhante bico de águia, dádivas de imagens em textos (e textos em imagens) que nem o surrealismo, com suas mãos sujas de falso onirismo, conseguiu surrupiar.

Ópio de povo besta... Conseguimos mesmo assim vencer a corrente dos contentes e manter nossa canoa solenemente parada e em movimento no rio poluído das informações infinitas. Em canoa calada não se olham os dentes.


Rodrigo Uriartt









1 Lautréamont. Poesias II. In: Obras completas – Os Cantos de Maldoror – PoesiasCartas. Iluminuras: São Paulo, 2a. ed. rev. e ampl. , 2005.
2 Pound, Ezra. ABC da Literatura. Cultrix: São Paulo, 1990.
3 Willer, Claudio. Prefácio op. cit. Págs. 49 e 50.
4 Lautréamont. Op. cit.
5 Uriartt, Rodrigo Balan. Digno Óciopoesias. Ed. do Autor: Porto Alegre, 2005.

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