15.12.06

COMO TER A SUA BANCA CANCELADA

COMO TER A BANCA CANCELADA

(ou de como tornar-se um bacharel nas estratégias do contrário)


Ils appellent les motifs de leurs actions: la gloire.

En voyant ces spectacles, j’ai voulu rire comme les autres;

mais, cela, étrange imitation, était impossible. Comte de L., 1868


vocabulário crítico em 12 lições


Diante do ossário decrépito que se sedimenta sobre a distribuição de valores nessa instituição, já quase centenária, venho trazer manifesto essas doze (um tanto autobiográficas) sugestões para conseguir a proeza de se ver excluído do processo corrente de conclusão de curso. [Por favor, não se importem com os nomes, que estarão ausentes desse relato por questões meramente literárias… Para maiores esclarecimentos sobre o pano de fundo comezinho dos fatos que impulsionaram esse texto, favor consultar o relato disponível na postagem logo abaixo desta]. Essas considerações devem necessariamente passar por métodos de divulgação e debate para que sejam analisadas e então descartadas ou promulgadas como regras inamovíveis.

1) Não dê uma pataca de Patinhas para nada e ninguém. Acredite no seu trabalho antes de tudo e de todos. Por mais que você admire o professor, orientador, amigo, galera descolada, namorada, família, ou o caralho a quatro; leve algo do seu trabalho que seja e apenas egoísticamente você! Mesmo que equivocado, cafona, fora de tempo, não contemporâneo ou qualquer bobagem semântica que venham a lhe professar, sempre será uma coisa a se conferir no filtro dos desejos/valores próprios: então não se iluda, você deve estar fazendo isso porque quer e não porque acha bacana receber um diploma de artista!?! Esse primeiro ponto é o que me ficou oculto, mas é também o que se faz valer sobre todos os outros. [Mas tome muito cuidado com o péssimo hábito do sentimento de especialidade que assola a classe autística. Isto encheu-me de muito nojo…]

2) Escolha o orientador errado. Esse foi meu erro e minha salvação. Deixar para escolher/chamar o orientador na última hora, quando todos os caras que você acha legais já foram pegos à tempos pelos seus colegas, é o primeiro passo prático, e com certeza decisivo, para a realização da façanha. O orientador errado terá que demonstrar entender tudo (uma pequena parte já seria o bastante) que você pretende, quando na realidade não entende picas, isso porque ele já perdeu o bonde do tempo, e você, por ter escolhido a pessoa capaz disso, é o verdadeiro responsável por isso. Então ele deve comentar absolutas bobagens sobre o seu trabalho, tipo tentar mudar o título quando ele é ainda o que menos importa, quando você precisa mesmo de alguém que crie dúvidas conceituais e/ou práticas, que tenha ao menos lido (textualmente ou não) o mínimo do que você leu, e que instigaram as suas divagações; e ainda assim achar que não vai dar em nada… Você deve acreditar que no fim ele irá entender a proposta básica e o desenvolvimento do seu processo e tudo irá se acertar. Esse orientador deve ser completamente incapaz de rir da sua cara logo no início do projeto e você de acrescer comentários enganosos como se fossem verdade. Aí o fundo do desprezo vai crescer e os seres não se entenderão, porque o ato comunicativo astral/intelectual/sensual/intuitivo, canal último do transporte xamânico-artístico, não terá como se realizar. Ou você irá se desenvolver com esse embate ou será amassado pela mediocridade.

3) Ignore a burocracia. Talvez tentem lhe falar para não dar importância à essas coisas, mas não acredite: no fim das contas esse é o único instrumento palpável que eles podem usar contra você. A nota, a entrega do texto final no prazo estabelecido pelas normas, qualquer detalhe exigido pela práxis da academia pode ser lançado como elemento desabonatório, (o pior é que todos concordam com isso, seus colegas e você, que assinou esse contrato sem ler) quando você menos esperar. Não se esqueça, nesse caso você não está fazendo arte, está sendo avaliado por uma banca de doutores em funcionalismo público! (bem, isso já é o procedimento 4).

5) Não faça uma capa bonita. Devo confessar que aos professores de verdade isso não tem a mínima importância (como poderíamos dizer o mesmo de todo o resto acima e talvez abaixo), mas uma capa incrementada (o calibre da lombada já seria outra questão separada [6]?!?) sempre chama atenção no mundo do design! É por isso que proponho, com minha experiência adquirida trabalhando à quatro anos no austero mundo do PPG em Epidemiologia da Faculdade de Medicina desta Universidade, que de agora em diante nossas capas sejam como as deles: simples e sintéticos fundos cinzas que não nos distrairão para o real conteúdo à partir da página 7. (desculpe, eu sei que vou ser malhado por nós artistas, que adoramos fazer de nossa apresentação um trabalho a parte, mas isso deveria ser encarado como uma contestação e não como uma deliciosa maquiagem.) Wittgenstein apresentou seu Tractatus Logico-Philosophicus em papéis reciclados de sentido, em parcas 33 páginas sem nenhuma referência explícita (outra questão [7], o que não é bem o meu caso, que adoro citar ao contrário os monstros do meu conhecimento). Lautreámont pagou tudo às suas expensas e nunca foi distribuído. Benjamin foi rejeitado pela cátedra por poetizar a história, e assim vai…

8) Escolha como um membro da banca um professor substituto e que ainda é um artista. [Essa não quero comentar que me dá raiva só de pensar nisso.]

9) Dê importância para a nota. Nunca se esqueça: a nota é uma chantagem consentida. Entre a ignorância dos pares e a falta de clarividência dos fatos essenciais prefira o papel do bobo que finge não entender a ironia canhestra de uma troca espúria. Essa coragem você deve evitar a todo custo se deseja ver o evento surreal realizado!

10) Ufa! Já não sei mais o que dizer… talvez isso… Não queira demonstrar que inovou em algo, que teve uma grande sacada, ou que criou, aparentemente, algo fora do comum. Afinal todo mundo espera que nós artistas sejamos altamente criativos e que inventemos a roda à cada semestre. [desculpem-me a ironia canina, mas não pude deixar de rir de mim mesmo…] Então se você quer passar pelo processo classificatório sem maiores percalços, faça de conta que reinventou o chão batido onde esse patinete já cansou de percorrer, mas que todos nós, pela mesma mediocridade inconscientemente compartilhada, iremos por fim aplaudir. Mas que isso fique totalmente estampado na aparência exterior daquilo que você mostra a massmidia intelectual que lhe cerca. Faça um roteiro, use de forma criativa esses lugares comuns da era pós-industrial. Misture intervenção urbana com poéticas das passagens, com espaços miscigenados e identidades mnemônicas. Tempere isso com a fina flor do godoismo do momento e com toda certeza estarás apto a mais um degrau no catolicismo cartesiano e, consequentemente, não alcançarás o feito derrisório.

11) Despeje suas ilusões frustadas na instituição. [isso já está ficando um saco!] Isso não tem desculpa: é uma bobagem mesmo! Então faça um texto metido a besta e o coloque pelos corredores rachados para que abusadas mãos os tomem.

12) Despreze o desprezo e tente ser feliz.

Aiô Silver! Quem chegou até aqui deve ter sentido o tom desarrazoado, acrimônico e rancoroso - está certo! - mas saiba que isso não foi nada fácil para mim… Como disse no início, isso não passa de literatura ruim que deseja sensibilizar alguns pobres corações que tenham suas cadeias protéicas infectadas com ultra-romantismo peçonhento. Que meu orixá Omulú venha varrer esses ossos e essa poeira dos meus olhos e fazer renascer das cinzas aquilo que de arte me foi arrancado.

Atôtô, Obulaiyê!

Rodrigo Balan Uriartt

Porto Alegre, dezembro quase férias de 2006

COVARDIA CONTAGIA - MEDIOCRIDADE MATA

...um relato de cabeça-quente



Covardia contagia – Mediocridade mata


Olá Lista, Colegas e Amigos


Não sei se vcs estão sabendo o que ocorreu comigo nessa última terça-feira, quando estava prestes à defender minha Banca de Graduação.

Ainda estou muito chateado pois tive minha banca cancelada por motivos torpes e todo meu investimento em trabalho, tempo, dedicação, reflexão, etc, foi sumariamente jogado no lixo.

Bem, na terça de manhã fui, assim como os outros graduandos, montar meu trabalho na entrada da Pinacoteca. Prendi as minhas 38 caixas-pretas de MDF nas paredes com fita-banana, com todo o cuidado e bem alinhadas da maneira que havia planejado. Depois de tudo pronto saí para almoçar e depois pegar o texto para a banca que havia mandado encadernar. Nisso me liga a Sol, minha namorada, que estava assistindo a banca da colega Dania, que acontecia ao lado do meu espaço, falando que as caixas estavam caindo da parede. Disse que deixasse assim que eu já estava chegando e daria um jeito. Às 15 horas me liga minha orientadora, Nilza Haertel da Serigrafia, dizendo que várias caixas haviam caído durante a defesa da Dania, ao qual ela participava como membro da banca e que isso tinha causado má impressão... Disse novamente que estava chegando e resolveria esse problema.
O que aconteceu foi que a referida professora simplesmente deu pra trás e me disse que se cancelasse a banca.
Fiquei super contrariado porque tinha muita confiança na qualidade do meu trabalho, que venho desenvolvendo desde o início do ano e que aborda uma nova técnica de gravura/fotografia (vejam no site que criei em
http://ruriak.googlepages.com ). Ela me disse que tinha causado uma má impressão a queda das minhas caixas, o que respondi que era ainda apenas 15:30 e minha banca começava as 17 horas, que tinha muito tempo para prendê-las à parede, inclusive com uma nova fita siliconada que a Dania havia me emprestado, que a parede tinha sido recém pintada depois da banca de uma aluna (que fez mias de mil furos nsa paredes que eu estava usando) e devia estar um tanto fresca e por isso as fitas não aderiam suficientemente, que isso não era desculpa para cancelar minha banca quando eu estava com tudo pronto e desejando ser avaliado.

'Ela me mostrou então o texto de uma colega que estava encadernado com capa dura, cento e poucas páginas, enquanto que o meu tinha 30 p. em encadernação térmica transparente simples. Eu disse que não tinha dinheiro para investir nessas coisas e o que importava realmente era o que estava dentro e a qualidade do meu trabalho final. Na real não estava totalmente satisfeito com meu texto pois havia me dedicado mais à parte prática do que ao blábláblá. Que tinha muitos questionamentos que não tive tempo de colocar no papel, mas que isso sempre irá acontecer, porque nosso trabalho está sempre em evolução, não pára nunca e nunca vamos ter um texto final para ele!

Meu trabalho era bom e maduro e isso é o que deveria importar mais numa banca de graduação de uma ênfase prática. Ela disse que eu havia entregado a versão final apenas um dia antes da banca o que respondi que o texto era praticamente o mesmo que eu havia entregue em mãos para os membros da banca um mês e meio antes. Aí ela veio com o argumento de que eu seria prejudicado na nota final, etc. Isso foi um golpe baixo pois eu sabia que meu trabalho mereceria uma nota A. Nunca dei bola para as notas no IA, mas a nota final é importante, quase todo mundo se forma no IA com a nota máxima (inclusive trabalhos que a gente sabe que talvez não mereceriam) e se vc vai querer pegar um mestrado depois vai ficar meio maus um B na nota final.

O QUE ACONTECEU É QUE FUI PRÉ-JULGADO E PRÉ-CONCEITUADO ANTES DE FAZER A MINHA BANCA. COMPARADO COM OUTRO TRABALHO E PRODUÇÃO QUE NÃO TINHA NADA HAVER COM O MEU E NÃO TIVE MEU TRABALHO AVALIADO COMO MERECIA!!!


Me sinto absolutamente injustiçado e desolado, pois terei que fazer uma banca no semestre que vem (com certeza com um orientador que entenda meu trabalho) e esse trabalho ficará morto no limbo!
Falo isso tudo para que vcs tomem muito cuidado com as pessoas que pegam como orientadores e certos membros da banca, que sejam firmes em seus propósitos e não se deixem levar por ameaças. Falo isso para acusar um ato de desrespeito com o trabalho artístico de um aluno que não é nem melhor nem pior de muitos outros que se formam na Instituição e que por motivos além de seu controle e que poderiam ser facilmente sanados ou revertidos, teve seu processo amputado, de uma maneira que nunca aconteceu antes. Inclusive outros professores que passaram pela sala (não vou citar nomes) não entenderam nada do porquê minha banca deveria ser cancelada por motivos tão pequenos.

Bem é isso… vou escrever uma carta para a direção do IA relatando esses fatos de uma maneira bem objetiva (não escrevi ainda porque estou muito envolvido emocionalmente pelo ocorrido) para que conste minha versão, e vou mandar também uma carta para minha (ex)-orientadora e os dois membros da banca (a profa. Blanca, que estava participando da banca antes da minha e se mancomunou com a Nilza para cancelar a minha banca; e o prof. Gabriel Netto que não entendeu nada e ficou indignado com uma tomada de decisão ao qual não foi consultado e que achava que meu trabalho tinha todo o direito de ser avaliado).


É isso, obrigado pela paciência e desculpem-me pelo testamento!
Abração

Rodrigo


PS: seguem, em cima, duas imagens que tirei enquando desmontava o circo na Pinacoteca... em uma delas dá até pra ver pedaços da parede que cairam junto com as caixas-pretas...

1.11.06

VERNISSAGE

Hakim Bey


Bem, a arte morreu, e agora? Vamos para casa? Algumas possibilidades de transformação na arte e através da arte.

O que é tão engraçado a respeito da Arte?

A Arte foi gargalhada até a morte pelo dada? Ou talvez este sardonicídio se deu ainda antes, com a primeira performance do Ubu Rei? Ou com a gargalhada sarcástica de fantasma-da-ópera de Baudelaire, que tanto perturbava seus bons amigos burgueses?

O que é engraçado a respeito da Arte (apesar de ser mais um engraçado-peculiar do que um engraçado-haha) é a visão do cadáver que se recusa a cair, esta farra de mortos-vivos, este teatro de marionetes macabro com todas as cordas ligadas ao Capital (um plutocrata inchado tipo Diego Rivera), este simulacro moribundo sacudindo freneticamente por , fingindo ser a única coisa viva de verdade em todo o Universo.

Em face de uma ironia como esta, uma duplicidade tão extrema que chega a um abismo intransponível, qualquer poder de cura de uma gargalhada-na-arte tem que ser no mínimo tomado como suspeito, a propriedade ilusória de uma auto-proclamada elite ou pseudo-vanguarda. Para haver uma vanguarda genuína, a Arte deveria estar indo a algum lugar, e há muito tempo que este não é o caso. Mencionamos Rivera; certamente nenhum outro artista político genuinamente engraçado chegou a pintar em nosso século - mas para que fim? Trotskysmo! O mais morto beco-sem-saída das políticas do século XX! Nenhum poder de cura aqui - apenas o barulho oco da zombaria sem poder, ecoando sobre o abismo.

Para curar, primeiro se destrói - e a arte política que falha em destruir o alvo de seu riso acaba fortificando exatamente as mesmas forças que pretende atacar. "O que não me mata, me deixa mais forte," diz com desprezo a figura suína em sua cartola brilhante (imitando Nietzsche, é claro, pobre Nietzsche, que tentou gargalhar todo o século dezenove até a morte, mas acabou como um cadáver vivo, cuja irmã atou cordas a seus membros para fazê-lo dançar para os fascistas).

Nãonada particularmente misterioso ou metafísico sobre o processo. As circunstâncias, a pobreza, certa vez forçaram Rivera a aceitar um trabalho para vir aos EUA e pintar um mural - para Rockfeller! - o próprio arquétipo máximo de leitão da Wall Street! Rivera fez de seu trabalho uma peça gritante de panfletagem comuna - e então Rockfeller a apagou. Como se isto não fosse engraçado o bastante, a piada de verdade é que Rockfeller poderia ter saboreado a vitória ainda mais docemente não destruindo o trabalho, mas pagando por ele e exibindo-o, transformando-o em Arte, essa parasita banguela da decoração de interiores, essa piada.

O sonho do Romantismo: que o mundo-realidade dos valores burgueses poderia de alguma maneira ser persuadido a consumir, a absorver, uma arte que à primeira vista se parecesse com todo o resto da arte (livros para ler, quadros para pendurar na parede, etc.), mas que secretamente infectaria a realidade com algo mais, que mudaria a maneira como essa realidade se , a subverteria, colocaria no lugar os valores revolucionários da arte.

Este também foi o sonho do surrealismo. Até mesmo o dada, apesar de sua descarada aparência de cinismo, ainda ousava ter esperanças. Do Romantismo ao Situacionismo, de Blake a 1968, o sonho de cada ontem vitorioso se tornou a decoração de sala de visitas de cada amanhã - comprado, mastigado, reproduzido, vendido, consignado a museus, bibliotecas, universidades e outros mausoléus, esquecido, perdido, ressuscitado, transformado em moda nostálgica, reproduzido, vendido, etc., etc., ad nauseam.

Para entender o quanto Cruikshank ou Daumier ou Grandville ou Rivera ou Tzara ou Duchamp destruíram a visão do mundo burguesa de seus tempos, é preciso se enterrar numa tempestade de referências históricas e se alucinar - que de fato a destruição-pela-gargalhada foi um sucesso teórico mas um fracasso na realidade - o peso morto da ilusão fracassou em fazer mover sequer uma polegada nos acessos de riso, o ataque da gargalhada. Não foi a sociedade burguesa que entrou em colapso no final, foi a arte.

À luz da peça que pregaram em nós, é como se o artista contemporâneo se visse frente a duas escolhas (uma vez que o suicídio não é uma solução): um, seguir lançando ataque atrás de ataque, movimento atrás de movimento, na esperança de que um dia (logo) "a coisa" vai ficar tão fraca, tão vazia, que vai evaporar e de repente nos deixar sozinhos no campo de batalha; ou, dois, começar imediatamente agora a viver como se a batalha estivesse ganha, como se hoje o artista não fosse um tipo especial de pessoa, mas cada pessoa um tipo especial de artista (foi isto que os Situacionistas chamaram de "a supressão e realização da arte").

Ambas estas opções são tão "impossíveis" que agir em qualquer uma delas seria uma piada. Não precisaríamos fazer arte "engraçada" por que apenas fazer arte seria engraçado o suficiente para soltar os intestinos. Mas pelo menos essa seria a nossa piada (quem pode dizer com certeza que falharíamos? "Eu amo não saber o futuro" - Nietzsche. Para que comecemos a jogar este jogo, devemos provavelmente estabelecer certas regras para nós mesmos:

1. Nãoquestões. Não existe esse negócio de sexismo, fascismo, especismo, visualismo, ou nenhum outra "franquia de questão" que possa ser separada do complexo social e tratada com um "discurso" como um "problema". Há apenas a totalidade que agrupa todas estas "questões" ilusórias na completa falsidade de seu discurso, tornando todas as opiniões, prós e contras, apenas mercadorias-pensamento para serem compradas e vendidas. E esta totalidade é ela própria uma ilusão, um pesadelo maligno do qual estamos tentando (através da arte, do humor, ou de qualquer outro meio) despertar.

2. Tanto quanto possível, qualquer coisa que façamos deve ser feita fora da estrutura psíquica/econômica gerada pela totalidade como o espaço permissível para o jogo da arte. Como, você pergunta, nós ganharemos a vida sem galerias, agentes, museus, publicação comercial, a National Endowment for the Arts e outras agências em benefício das artes? Bem, ninguém precisa pedir pelo improvável. Mas se deve com certeza exigir o "impossível" - ou então, por que diabos uma pessoa é artista?! Não é o suficiente ocupar um pedestal sagrado e especial chamado Arte de cima do qual se zomba da estupidez e injustiça do mundo "quadrado". A arte é parte do problema. O Mundo da Arte está com a cabeça enfiada no próprio cu, e faz-se necessário se desprender disto - ou então viver em uma paisagem cheia de merda.

3. Claro que se deve "ganhar a vida" de alguma maneira - mas o essencial aqui é viver. Seja o que for que fizermos, qualquer que seja a opção que escolhamos (talvez todas elas), ou o quanto profundamente nos comprometamos, devemos rezar para nunca confundir arte com vida: a Arte é breve, a Vida é longa. Devemos tentar estar preparados para derivar, nomadizar, escapar de todas as redes, nunca estabilizar, viver através de várias artes, fazer nossas vidas melhores que nossa arte, fazer da arte nosso orgulho em vez de nossa desculpa.

4. O riso que cura (em oposição à gargalhada corrosiva e venenosa) pode surgir de uma arte que seja séria - séria, mas não sóbria. Morbidez sem sentido, niilismo cínico, frivolidade hype pós-moderna, lamentar/resmungar/reclamar (o culto liberal da "vítima"), exaustão, a irônica hiper-conformidade baudrillardiana - nenhuma destas opções é séria o suficiente, e ao mesmo tempo nenhuma é intoxicada o bastante para servir aos nossos propósitos, muito menos para provocar a nossa gargalhada.


______________________________________-

Tradução de Norma Nicht

Fontes: Sabotagem (www.inventati.org/sabotagem/database/index.php).

Descartável (http://www.descartavel.com/).

peguei esse lindo manifesto do mestre da Anarquia Ontológica Hakim Bey, no site http://www.rizoma.net/ : espero que sirva para mexermos um pouco nossas idéias (e ações) ...!!! Rodrigo.

17.7.06

Filosofia da Cultura

pequeno texto que fiz para a cadeira de Filosofia da Cultura com a incrível Kathrin Rosenfield:


As Fúrias, as Hidras, as Zibelinas
Evolução da cultura e a representação do indivíduo


por Rodrigo Balan Uriartt

A história universal talvez seja a história da diferente
entonação de algumas metáforas. J. L. Borges



Representação da individuação nos textos, nas culturas?

Percorrendo da vida mítica arcaica, da sociedade dos coletores / caçadores / guerreiros, ao mundo mais sutil da interpretação mitológica, percebesse um imenso salto conceptual.

Como o homem desprendeu-se de uma vida imersa e indiferenciada com os conteúdos míticos e psicológicos para separar-se e analisar essas forças fora de si?

Na epopéia de Gilgamesh a ação se desenrola como que movida por forças naturais e caprichos teocráticos: poderes que nosso herói subjuga momentaneamente ou a eles é subjugado. Ele parece não possuir consciência dos seus valores individuais intrínsecos e de seu papel como agente na cultura a que pertence.

Evolução da cultura versus representação do indivíduo. Essa não é uma relação de real oposição, e sim uma problemática que se auto-alimenta desses mesmos pares: cultura e individuação.

Podemos realmente afirmar que o herói mítico, como Gilgamesh, não tem consciência de si como indivíduo? Possuímos o instrumental semiológico e a intuição sem travas para penetrarmos completamente na visão interior do homem arcaico? Pensamos e vivemos através e com nossos pré-conceitos culturais e familiares; então não temos como pré-julgar e proferir sentenças qualitativas cabais sobre certa época ou civilização.

O que podemos é tentar encontrar a ressonância poética que atravessa os textos da história, como um leitor que penetra o mondo incognito, com os olhos penetrantes e os ouvidos bem abertos [é que as coisas que ele e ouve podem transformá-lo totalmente e embeber sua alma, assim como a água ao açúcar1], como o observador que observa a si mesmo e reflete em seu pensamento, que vai transcrevendo giros de nuvens pelo céu da dúvida cartesiana, como os gatos que percebem os vultos fantasmagóricos num semicerrar de suas longas pestanas, como o galo de canto solitário que irritantemente antecipa os primeiros raios da manhã, como a culpa defenestrada pela fúria consumidora de cem mil volts, deixando sem luz as tristes cidades da usura, como Pound fazendo as escolhas erradas com os textos certos, preso na gorilla cage do patriotismo wasp ianque.

No que difere estruturalmente um sumério da antigüidade, um heleno arcádico de um clássico, um gentil-homem do renascimento de um escritor do modernismo?

Sim, é claro como a mecânica dos fluídos que a kultur refinou-se [em finos cristais e pedúnculos de açúcar] e com ela o projeto-homem nesse processo histórico. Também é claro como lampejos de urânio que o vocabulário de sentimentos humanos se ampliou e se estratificou grandemente. Que hoje temos ao nosso dispor ferramentas poderosas para descrever mais objetivamente as profundezas insondáveis da alma humana. Vieil océan.2 Mas nossa dúvida, não sabemos, talvez resida dessa mesma objetividade. Será que o homem antigo, aparentemente indissociado do mundo mítico, não estaria de certa forma mais apto, nos casos em que isso se fazia necessário, a se fazer valer de potências e aptidões que hoje, homens modernizados pela facilidade de tudo, não somos mais capazes de conclamar?

Parece que se somos fortes na intelectualização e subjetivação dos conceitos psicológicos e culturais, somos cada vez mais falhos na busca objetiva de um sentido transcendente e integrador em nossas vidas individuais e coletivas.

Com isso não queremos nos apor na busca de um Deus demiúrgico que restaure nossa queda, pela ingestão mal digerida dum fruto proibido do bem e do mal, gnose sem deserto, nem pela vinda de uma pretensa Nova Era (new age) de conscientização global que transformará finalmente os lobos em carneirinhos. Somos cães (kynikós) o suficiente para rosnar às mitologias auto-obsedantes (ver Barthes), aos melaços conceituais e as armadilhas de condomínios fechados das idéias acadêmicas de menininhas com celulares masturbatórios.

O homem tem sua realidade pé-no-chão, da luta no cotidiano, com as mesmas pulsões de sobrevivência que as bestas feras e os cordeiros; e tem também sua realidade mágica, que responde aos toques dos sentidos supra-racionais no mundo intangível, devorador de mistérios. O homem é um bicho de pernas eretas e mãos livres, consciente de si navegando no desconhecido!


Pequeno esquema sem nenhum desenvolvimento formal:

· O homem da antigüidade lutou para dissociar-se dos poderes indiferenciados da Natureza criadora e destruidora (Shiva e Kali).
· O homem clássico das sementes doce-amargas lançadas pelos deuses.
· O da Renascença da culpa e purgatório de uma religião que não religava mais nada.
· O Moderno acreditou na razão como um processo coletivo propulsor.
· O pós-moderno, desiludido no vazio ruidoso criado pelo seu maquinário inútil, perdeu-se num mundo de revivals e pseudonomadismo.


Nosso mito novo será um semideus em si, livre das pegadas familiares, sociais, culturais, autoimagéticas, recompensas mediúnicas, Estados totalizadores ou globalizantes, transcendentalismos e outras drogas midiáticas?

Um cyberxamã navegando pelos mares informacionais ou a genialidade neurótica de um Glenn Gould interpretando incessantemente as Variações Goldberg de Bach? Um mundo big-brother com câmeras-olho por todo lado e homens chipados com o número da Besta, ou uma cultura de massa que não devore seu próprio umbigo e destrua a livre associação entre os homens?

Bombas semânticas, scuds poéticos e aedos pelas praças… e viva Walden!



Porto Alegre, inverno de 2006



Bibliografia (sem ABNT):

Borges: Nova Antologia Pessoal
Hakim Bey: Zona Autônoma Temporária e demais escrachos
Lautréamont: de tudo um pouco
Guy Debord: A Sociedade do Espetáculo
Nietzche: Assim Falou Zaratustra
Walter Benjamin: Sobre o Conceito da História
Rodrigo Uriartt: Digno Ócio e outros poemas
Ezra Pound: Personae e outros cantares
O nagual Carlos Castañeda
Roland Barthes: Mitologias
Sites conspiratórios e Iluminatti
Pré-beats, beats e pós-beats


Notas:

1 Lautréamont. Os Cantos de Maldoror. Trad. Claudio Willer. Iluminuras, São Paulo, 2005. Canto Primeiro, estrofe 1.
2 op. cit. Canto Primeiro, estrofe 9. “Velho oceano, tu és o símbolo da identidade: sempre igual a ti mesmo. Tu não varias de uma maneira essencial, e se tuas ondas estão em fúria em algum lugar, mais longe, em outra zona, estão na mais completa calma. Não és como o homem, que pára nas ruas para ver dois buldogues avançando um sobre o pescoço do outro, mas que não pára ao passar um enterro: que está acessível pela manhã e de mau humor à noite; que ri hoje e chora amanhã. Eu te saúdo, velho oceano!”