1.11.06

VERNISSAGE

Hakim Bey


Bem, a arte morreu, e agora? Vamos para casa? Algumas possibilidades de transformação na arte e através da arte.

O que é tão engraçado a respeito da Arte?

A Arte foi gargalhada até a morte pelo dada? Ou talvez este sardonicídio se deu ainda antes, com a primeira performance do Ubu Rei? Ou com a gargalhada sarcástica de fantasma-da-ópera de Baudelaire, que tanto perturbava seus bons amigos burgueses?

O que é engraçado a respeito da Arte (apesar de ser mais um engraçado-peculiar do que um engraçado-haha) é a visão do cadáver que se recusa a cair, esta farra de mortos-vivos, este teatro de marionetes macabro com todas as cordas ligadas ao Capital (um plutocrata inchado tipo Diego Rivera), este simulacro moribundo sacudindo freneticamente por , fingindo ser a única coisa viva de verdade em todo o Universo.

Em face de uma ironia como esta, uma duplicidade tão extrema que chega a um abismo intransponível, qualquer poder de cura de uma gargalhada-na-arte tem que ser no mínimo tomado como suspeito, a propriedade ilusória de uma auto-proclamada elite ou pseudo-vanguarda. Para haver uma vanguarda genuína, a Arte deveria estar indo a algum lugar, e há muito tempo que este não é o caso. Mencionamos Rivera; certamente nenhum outro artista político genuinamente engraçado chegou a pintar em nosso século - mas para que fim? Trotskysmo! O mais morto beco-sem-saída das políticas do século XX! Nenhum poder de cura aqui - apenas o barulho oco da zombaria sem poder, ecoando sobre o abismo.

Para curar, primeiro se destrói - e a arte política que falha em destruir o alvo de seu riso acaba fortificando exatamente as mesmas forças que pretende atacar. "O que não me mata, me deixa mais forte," diz com desprezo a figura suína em sua cartola brilhante (imitando Nietzsche, é claro, pobre Nietzsche, que tentou gargalhar todo o século dezenove até a morte, mas acabou como um cadáver vivo, cuja irmã atou cordas a seus membros para fazê-lo dançar para os fascistas).

Nãonada particularmente misterioso ou metafísico sobre o processo. As circunstâncias, a pobreza, certa vez forçaram Rivera a aceitar um trabalho para vir aos EUA e pintar um mural - para Rockfeller! - o próprio arquétipo máximo de leitão da Wall Street! Rivera fez de seu trabalho uma peça gritante de panfletagem comuna - e então Rockfeller a apagou. Como se isto não fosse engraçado o bastante, a piada de verdade é que Rockfeller poderia ter saboreado a vitória ainda mais docemente não destruindo o trabalho, mas pagando por ele e exibindo-o, transformando-o em Arte, essa parasita banguela da decoração de interiores, essa piada.

O sonho do Romantismo: que o mundo-realidade dos valores burgueses poderia de alguma maneira ser persuadido a consumir, a absorver, uma arte que à primeira vista se parecesse com todo o resto da arte (livros para ler, quadros para pendurar na parede, etc.), mas que secretamente infectaria a realidade com algo mais, que mudaria a maneira como essa realidade se , a subverteria, colocaria no lugar os valores revolucionários da arte.

Este também foi o sonho do surrealismo. Até mesmo o dada, apesar de sua descarada aparência de cinismo, ainda ousava ter esperanças. Do Romantismo ao Situacionismo, de Blake a 1968, o sonho de cada ontem vitorioso se tornou a decoração de sala de visitas de cada amanhã - comprado, mastigado, reproduzido, vendido, consignado a museus, bibliotecas, universidades e outros mausoléus, esquecido, perdido, ressuscitado, transformado em moda nostálgica, reproduzido, vendido, etc., etc., ad nauseam.

Para entender o quanto Cruikshank ou Daumier ou Grandville ou Rivera ou Tzara ou Duchamp destruíram a visão do mundo burguesa de seus tempos, é preciso se enterrar numa tempestade de referências históricas e se alucinar - que de fato a destruição-pela-gargalhada foi um sucesso teórico mas um fracasso na realidade - o peso morto da ilusão fracassou em fazer mover sequer uma polegada nos acessos de riso, o ataque da gargalhada. Não foi a sociedade burguesa que entrou em colapso no final, foi a arte.

À luz da peça que pregaram em nós, é como se o artista contemporâneo se visse frente a duas escolhas (uma vez que o suicídio não é uma solução): um, seguir lançando ataque atrás de ataque, movimento atrás de movimento, na esperança de que um dia (logo) "a coisa" vai ficar tão fraca, tão vazia, que vai evaporar e de repente nos deixar sozinhos no campo de batalha; ou, dois, começar imediatamente agora a viver como se a batalha estivesse ganha, como se hoje o artista não fosse um tipo especial de pessoa, mas cada pessoa um tipo especial de artista (foi isto que os Situacionistas chamaram de "a supressão e realização da arte").

Ambas estas opções são tão "impossíveis" que agir em qualquer uma delas seria uma piada. Não precisaríamos fazer arte "engraçada" por que apenas fazer arte seria engraçado o suficiente para soltar os intestinos. Mas pelo menos essa seria a nossa piada (quem pode dizer com certeza que falharíamos? "Eu amo não saber o futuro" - Nietzsche. Para que comecemos a jogar este jogo, devemos provavelmente estabelecer certas regras para nós mesmos:

1. Nãoquestões. Não existe esse negócio de sexismo, fascismo, especismo, visualismo, ou nenhum outra "franquia de questão" que possa ser separada do complexo social e tratada com um "discurso" como um "problema". Há apenas a totalidade que agrupa todas estas "questões" ilusórias na completa falsidade de seu discurso, tornando todas as opiniões, prós e contras, apenas mercadorias-pensamento para serem compradas e vendidas. E esta totalidade é ela própria uma ilusão, um pesadelo maligno do qual estamos tentando (através da arte, do humor, ou de qualquer outro meio) despertar.

2. Tanto quanto possível, qualquer coisa que façamos deve ser feita fora da estrutura psíquica/econômica gerada pela totalidade como o espaço permissível para o jogo da arte. Como, você pergunta, nós ganharemos a vida sem galerias, agentes, museus, publicação comercial, a National Endowment for the Arts e outras agências em benefício das artes? Bem, ninguém precisa pedir pelo improvável. Mas se deve com certeza exigir o "impossível" - ou então, por que diabos uma pessoa é artista?! Não é o suficiente ocupar um pedestal sagrado e especial chamado Arte de cima do qual se zomba da estupidez e injustiça do mundo "quadrado". A arte é parte do problema. O Mundo da Arte está com a cabeça enfiada no próprio cu, e faz-se necessário se desprender disto - ou então viver em uma paisagem cheia de merda.

3. Claro que se deve "ganhar a vida" de alguma maneira - mas o essencial aqui é viver. Seja o que for que fizermos, qualquer que seja a opção que escolhamos (talvez todas elas), ou o quanto profundamente nos comprometamos, devemos rezar para nunca confundir arte com vida: a Arte é breve, a Vida é longa. Devemos tentar estar preparados para derivar, nomadizar, escapar de todas as redes, nunca estabilizar, viver através de várias artes, fazer nossas vidas melhores que nossa arte, fazer da arte nosso orgulho em vez de nossa desculpa.

4. O riso que cura (em oposição à gargalhada corrosiva e venenosa) pode surgir de uma arte que seja séria - séria, mas não sóbria. Morbidez sem sentido, niilismo cínico, frivolidade hype pós-moderna, lamentar/resmungar/reclamar (o culto liberal da "vítima"), exaustão, a irônica hiper-conformidade baudrillardiana - nenhuma destas opções é séria o suficiente, e ao mesmo tempo nenhuma é intoxicada o bastante para servir aos nossos propósitos, muito menos para provocar a nossa gargalhada.


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Tradução de Norma Nicht

Fontes: Sabotagem (www.inventati.org/sabotagem/database/index.php).

Descartável (http://www.descartavel.com/).

peguei esse lindo manifesto do mestre da Anarquia Ontológica Hakim Bey, no site http://www.rizoma.net/ : espero que sirva para mexermos um pouco nossas idéias (e ações) ...!!! Rodrigo.