17.7.06

Filosofia da Cultura

pequeno texto que fiz para a cadeira de Filosofia da Cultura com a incrível Kathrin Rosenfield:


As Fúrias, as Hidras, as Zibelinas
Evolução da cultura e a representação do indivíduo


por Rodrigo Balan Uriartt

A história universal talvez seja a história da diferente
entonação de algumas metáforas. J. L. Borges



Representação da individuação nos textos, nas culturas?

Percorrendo da vida mítica arcaica, da sociedade dos coletores / caçadores / guerreiros, ao mundo mais sutil da interpretação mitológica, percebesse um imenso salto conceptual.

Como o homem desprendeu-se de uma vida imersa e indiferenciada com os conteúdos míticos e psicológicos para separar-se e analisar essas forças fora de si?

Na epopéia de Gilgamesh a ação se desenrola como que movida por forças naturais e caprichos teocráticos: poderes que nosso herói subjuga momentaneamente ou a eles é subjugado. Ele parece não possuir consciência dos seus valores individuais intrínsecos e de seu papel como agente na cultura a que pertence.

Evolução da cultura versus representação do indivíduo. Essa não é uma relação de real oposição, e sim uma problemática que se auto-alimenta desses mesmos pares: cultura e individuação.

Podemos realmente afirmar que o herói mítico, como Gilgamesh, não tem consciência de si como indivíduo? Possuímos o instrumental semiológico e a intuição sem travas para penetrarmos completamente na visão interior do homem arcaico? Pensamos e vivemos através e com nossos pré-conceitos culturais e familiares; então não temos como pré-julgar e proferir sentenças qualitativas cabais sobre certa época ou civilização.

O que podemos é tentar encontrar a ressonância poética que atravessa os textos da história, como um leitor que penetra o mondo incognito, com os olhos penetrantes e os ouvidos bem abertos [é que as coisas que ele e ouve podem transformá-lo totalmente e embeber sua alma, assim como a água ao açúcar1], como o observador que observa a si mesmo e reflete em seu pensamento, que vai transcrevendo giros de nuvens pelo céu da dúvida cartesiana, como os gatos que percebem os vultos fantasmagóricos num semicerrar de suas longas pestanas, como o galo de canto solitário que irritantemente antecipa os primeiros raios da manhã, como a culpa defenestrada pela fúria consumidora de cem mil volts, deixando sem luz as tristes cidades da usura, como Pound fazendo as escolhas erradas com os textos certos, preso na gorilla cage do patriotismo wasp ianque.

No que difere estruturalmente um sumério da antigüidade, um heleno arcádico de um clássico, um gentil-homem do renascimento de um escritor do modernismo?

Sim, é claro como a mecânica dos fluídos que a kultur refinou-se [em finos cristais e pedúnculos de açúcar] e com ela o projeto-homem nesse processo histórico. Também é claro como lampejos de urânio que o vocabulário de sentimentos humanos se ampliou e se estratificou grandemente. Que hoje temos ao nosso dispor ferramentas poderosas para descrever mais objetivamente as profundezas insondáveis da alma humana. Vieil océan.2 Mas nossa dúvida, não sabemos, talvez resida dessa mesma objetividade. Será que o homem antigo, aparentemente indissociado do mundo mítico, não estaria de certa forma mais apto, nos casos em que isso se fazia necessário, a se fazer valer de potências e aptidões que hoje, homens modernizados pela facilidade de tudo, não somos mais capazes de conclamar?

Parece que se somos fortes na intelectualização e subjetivação dos conceitos psicológicos e culturais, somos cada vez mais falhos na busca objetiva de um sentido transcendente e integrador em nossas vidas individuais e coletivas.

Com isso não queremos nos apor na busca de um Deus demiúrgico que restaure nossa queda, pela ingestão mal digerida dum fruto proibido do bem e do mal, gnose sem deserto, nem pela vinda de uma pretensa Nova Era (new age) de conscientização global que transformará finalmente os lobos em carneirinhos. Somos cães (kynikós) o suficiente para rosnar às mitologias auto-obsedantes (ver Barthes), aos melaços conceituais e as armadilhas de condomínios fechados das idéias acadêmicas de menininhas com celulares masturbatórios.

O homem tem sua realidade pé-no-chão, da luta no cotidiano, com as mesmas pulsões de sobrevivência que as bestas feras e os cordeiros; e tem também sua realidade mágica, que responde aos toques dos sentidos supra-racionais no mundo intangível, devorador de mistérios. O homem é um bicho de pernas eretas e mãos livres, consciente de si navegando no desconhecido!


Pequeno esquema sem nenhum desenvolvimento formal:

· O homem da antigüidade lutou para dissociar-se dos poderes indiferenciados da Natureza criadora e destruidora (Shiva e Kali).
· O homem clássico das sementes doce-amargas lançadas pelos deuses.
· O da Renascença da culpa e purgatório de uma religião que não religava mais nada.
· O Moderno acreditou na razão como um processo coletivo propulsor.
· O pós-moderno, desiludido no vazio ruidoso criado pelo seu maquinário inútil, perdeu-se num mundo de revivals e pseudonomadismo.


Nosso mito novo será um semideus em si, livre das pegadas familiares, sociais, culturais, autoimagéticas, recompensas mediúnicas, Estados totalizadores ou globalizantes, transcendentalismos e outras drogas midiáticas?

Um cyberxamã navegando pelos mares informacionais ou a genialidade neurótica de um Glenn Gould interpretando incessantemente as Variações Goldberg de Bach? Um mundo big-brother com câmeras-olho por todo lado e homens chipados com o número da Besta, ou uma cultura de massa que não devore seu próprio umbigo e destrua a livre associação entre os homens?

Bombas semânticas, scuds poéticos e aedos pelas praças… e viva Walden!



Porto Alegre, inverno de 2006



Bibliografia (sem ABNT):

Borges: Nova Antologia Pessoal
Hakim Bey: Zona Autônoma Temporária e demais escrachos
Lautréamont: de tudo um pouco
Guy Debord: A Sociedade do Espetáculo
Nietzche: Assim Falou Zaratustra
Walter Benjamin: Sobre o Conceito da História
Rodrigo Uriartt: Digno Ócio e outros poemas
Ezra Pound: Personae e outros cantares
O nagual Carlos Castañeda
Roland Barthes: Mitologias
Sites conspiratórios e Iluminatti
Pré-beats, beats e pós-beats


Notas:

1 Lautréamont. Os Cantos de Maldoror. Trad. Claudio Willer. Iluminuras, São Paulo, 2005. Canto Primeiro, estrofe 1.
2 op. cit. Canto Primeiro, estrofe 9. “Velho oceano, tu és o símbolo da identidade: sempre igual a ti mesmo. Tu não varias de uma maneira essencial, e se tuas ondas estão em fúria em algum lugar, mais longe, em outra zona, estão na mais completa calma. Não és como o homem, que pára nas ruas para ver dois buldogues avançando um sobre o pescoço do outro, mas que não pára ao passar um enterro: que está acessível pela manhã e de mau humor à noite; que ri hoje e chora amanhã. Eu te saúdo, velho oceano!”